O Brasil é o país onde o racismo deu certo, onde o negro acredita que não é discriminado e o branco acredita que não é racista. O Brasil teve sua estrutura social baseada no processo de escravidão, o que gerou vários problemas sociais e uma desigualdade racial entre brancos e negros. No entanto, durante muito tempo, acreditou-se que essa desigualdade no Brasil não era tão grande como em outros países. Por exemplo, nos Estados Unidos existia um regime de segregação racial que estava na lei, e na África do Sul existia o regime do apartheid. Comparando esses dois regimes com o brasileiro, a impressão que se tem é de que o regime aqui era realmente mais suave. Assim, surgiu a ideia de que no Brasil existiria uma suposta democracia racial. Essas ideias foram muito influenciadas por Gilberto Freire em sua obra Casa-grande & Senzala. Em um trecho do livro, ele diz: “Híbrida desde o início, a sociedade brasileira é, de todas da América, a que se constituiu da forma mais harmoniosa quanto às relações de raça; dentro de um ambiente de quase reciprocidade cultural, que resultou no máximo de aproveitamento dos valores e experiências do povo atrasados pelos adiantados.” A ideia de Gilberto Freire é que, no Brasil, brancos e negros se davam muito bem, e por isso o Brasil era miscigenado. Por outro lado, a filósofa e escritora Sueli Carneiro costuma lembrar que a miscigenação inicialmente surgiu pela prática do estupro colonial, praticado pelo colonizador primeiramente sobre as mulheres indígenas e, posteriormente, sobre as mulheres negras escravizadas. Mas, para Gilberto Freire, a melhor coisa que aconteceu no Brasil foi a mistura das raças, e que estávamos prestes a formar uma raça nova. Embora Gilberto Freire aparentemente tivesse boas intenções, ele operava com conceitos de raça baseados na ideia de povos “atrasados” e “adiantados”, superioridade e inferioridade, raça branca e raça negra. Além disso, ele trouxe para o imaginário popular a ideia de que nós éramos um povo muito bem resolvido em relação à raça. O Brasil ficou muito conhecido como o país onde não havia racismo, tanto que a UNESCO, em 1950, resolveu encomendar um estudo a respeito do racismo. É interessante contextualizar que estávamos em um período pós-guerra. A ONU passou a entender que um dos grandes problemas da guerra era o racismo, pois, na época, houve, por exemplo, o processo de nazismo e a tentativa de extermínio de povos. Esse estudo tinha o objetivo de compreender se existia um país onde havia uma democracia racial e identificar quais seriam os elementos desse país para tentar aplicá-los em outros. A ideia era que o Brasil representava esse país “não racista” e deveria ser modelo para os outros países.
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Os escolhidos pela UNESCO para fazer esse estudo foram os sociólogos Florestan Fernandes e Roger Bastide, e os dois pediram muito auxílio aos membros do movimento negro. Foi um estudo amplo sobre o tema. Logo no início das pesquisas, eles chegaram à conclusão de que o Brasil é extremamente racista. No entanto, o racismo no Brasil é diferente do que existia na África e nos EUA, porque lá o racismo era declarado, inclusive estava dentro da lei, enquanto no Brasil o racismo é velado. Ninguém gosta de falar que é racista. Durante a pesquisa, as pessoas sempre apontavam o outro como racista: o vizinho, o sogro, os irmãos, os amigos etc., mas não assumiam que eram racistas. Ou seja, no fim das contas, eles chegaram à conclusão de que ninguém se considerava racista, mas todo mundo conhecia alguém que o era, então algo estava errado. A negação do racismo fazia com que nada fosse feito. Uma das coisas que Florestan Fernandes identificou foi que existe racismo porque há uma desigualdade racial, e se existe desigualdade racial, é porque não existe democracia. Portanto, não somos um país democrático, pois temos diferenças de situação entre brancos e negros. Ou, mais ainda, o Brasil quer ser um país meritocrático, mas não o é.Pois o Brasil, durante mais de três séculos, passou por um processo de escravidão que gerou diversas questões de exclusão social e alienação cultural da população negra. É impossível falar de meritocracia em um país que foi colonizado, onde não ocorreu um grande processo de reparação. A negação do racismo, por exemplo, tem criado dificuldades para a criação do COMPIR na cidade de Taubaté, onde o presidente da Câmara Municipal, um homem branco, cita a meritocracia disfarçada de privilégios. Mesmo com Taubaté tendo 4% de sua população negra, ele se sente ameaçado em democratizar as oportunidades e perder os seus privilégios com a criação do COMPIR, e diz que isso pode causar a supremacia do povo negro na cidade. A educadora e ativista do movimento negro Tamires Maia ressalta que negar a existência do racismo no Brasil é negar todo o processo histórico que construiu esse país. Reconhecer a existência do racismo, mas não se reconhecer como racista, contribui para que ele continue acontecendo. Negar a criação de conselhos municipais que visam combater a discriminação contra grupos específicos é contribuir com a violência e a desumanização! Por fim, cito uma reflexão de Frantz Fanon, que diz: “As estruturas sociais coloniais são introjetadas na subjetividade do colonizado e, assim, seria necessária uma mudança radical nas estruturas sociais. Para que essa mudança radical aconteça, é necessária a conscientização e, mais importante, a normatização, para que essas pessoas sejam obrigadas, por meio da lei, a democratizar as oportunidades e os privilégios.”